A Divina Comédia e Astrologia I
- Filipa Araújo

- 11 de fev.
- 4 min de leitura
As Estrelas e a Espiritualidade na Cosmologia da Comédia de Dante [1]
Hoje sabemos que a astronomia e a astrologia não eram separadas na Idade Média.
Sabemos também que a Comédia de Dante é permeada por uma astrologia
cristianizada que não difere das principais correntes da filosofia medieval. A posição da astrologia na cultura medieval era uma posição exaltado. Já Macróbio sugeria mesmo que o pensamento racional e especulativo, as mais altas faculdades da alma, tinham origem no céu de Saturno e estava associado ao estudo da astrologia. No seu Comentário sobre o Sonho de Cipião, descreve os valores inerentes a cada uma das esferas planetárias e a forma como a alma desce pelos céus e "adquire cada um dos atributos que irá exercer mais tarde. Na esfera de Saturno, ela obtém razão e compreensão, chamada logistikon e teortikon".

Nesta viagem épica de Dante, a astrologia proporciona a coerência cosmológica que permite ao poeta reunir ciência, religião, poesia, mito, e uma profunda visão mística. O Paraíso, em particular está organizado em torno do cosmos de Aristóteles, com os corpos astronómicos espiritualizados de acordo com as categorias teológicas e associações astrológicas. A mistura bem sucedida do poeta de todos estes elementos forjam o que Giuseppe Mazzotta chamou de "tradução da Beatitude em termos astronómicos".
No Canto I do Purgatório, Dante emerge do submundo para ver quatro estrelas
brilhantes, da Constelação do Cruzeiro Sul (Dante pode ter ouviram falar da Cruz do Sul por parte dos viajantes) e são símbolos cruciais que dizem ao peregrino o que está reservado nesta fase da sua viagem. Eles são as Virtudes Cardeais: Prudência, Temperança, Justiça e Força, e vê-as como luzes no céu, ideais pelos quais pode lutar e que ele pode atingir. Mais tarde, no Canto VIII, ele vê outras três estrelas que são as Virtudes Teologais: Fé, Esperança e Caridade. As quatro estrelas, que naquela manhã rodaram sob a montanha, e, posteriormente, a visão das três estrelas sinalizam que a sua viagem passou para uma nova fase. As quatro primeiras são virtudes prévias ou pagãs, substituídas pelas três que são consideradas especificamente como sendo virtudes cristãs. Mais tarde, ainda, no Canto XXXI, logo após Dante ser conduzido ao rio Letes por Matilda, que lhe mergulha a cabeça para que beba daquela água que lhe tira a memória do pecado, ele é conduzido para dançar com quatro adoráveis donzelas, que lhe juntam as mãos. Estas quatro donzelas são as quatro virtudes cardeais realizadas, e elas dizem: "Aqui estamos nós, ninfas e no céu, estrelas".
Compreender a famosa harmonia em que a astronomia, a religião, poesia, e mitologia são unidos na Comédia de Dante é apreciar o gosto medieval pela alegoria. Quando a alma encarna a
Prudência, Temperança, Justiça e Fortitude, Dante está a dançar com ninfas perante um grifo no Jardim de Éden. As estrelas avistadas a partir da superfície da terra são novamente estrelas no céu, mas que tipo de estrelas? Na física aristotélica, são, em alguns aspetos, uma forma de matéria e, em outros aspetos, seres vivos com desejo ou amor. São feitos de fogo, ou resultam do calor causado pelo atrito com a esfera vizinha? Nem mesmo Aristóteles resolve esta questão. De acordo com Platão, no Timeu, ao qual Dante teve acesso, as estrelas são simplesmente almas implantadas nos corpos humanos e que acabam por regressar aos céus como estrelas. Dante foi claramente influenciado por este primado, mas modifica-o consideravelmente de acordo com a ortodoxia cristã tradicional. No Paraíso, Dante encontra figuras tais como Boécio e Alberto Magno que “rodam e dançam como estrelas que circulam perto do fixo polo”. No entanto, Dante deixa claro ao leitor que as almas angélicas não habitam realmente nas esferas do Sol, Marte, Júpiter e os outros planetas, mas aparecem aí apenas como imagens para fins pedagógicos, ou seja, para treinar a visão espiritual de Dante para que ele possa finalmente, no final do Paraíso, ver os anjos, o céu, e Deus, como eles realmente são.

A Comédia de Dante analisa o universo do século XIII sob a forma de uma
peregrinação através da vida após a morte. Todos os lugares onde uma alma pode
terminar a sua viagem são visitados e descritos. Uma das primeiras coisas que o leitor percebe sobre a Comédia é a coerência do todo o sistema intricado de padrões e correspondências consistentes ao longo do poema. Este universo é uma síntese de Aristóteles, Virgílio e de escritos bíblicos e patrísticos, cuja cosmologia didática é concebida para revelar perceções de complexidade cada vez maior à medida que acompanhamos o peregrino, Dante, através os círculos do Inferno, Purgatório, e finalmente, o Paraíso. A Terra, onde vivemos a nossa existência mundana, é apenas uma pequena parte deste sistema, e à medida que avançamos no poema, é-nos ensinado a ver o mundo a partir de uma perspetiva diferente. O próprio poema é, em muitos aspetos, um rito de passagem, um ritual de iniciação, e ler o poema é submeter-se a este rito, um doloroso rito de resistência no início, e por fim uma revelação extasiante de alegrias de outro mundo.
As estrelas desempenham um papel de suma importância para a manutenção deste sistema, tanto no papel que desempenham na cosmologia, como na parte poética, pois revelam a função simbólica que têm no tecido desta obra literária. Dante alerta-nos para a importância das estrelas ao terminar cada canto com a palavra "estrelas" proporcionando uma visão tanto da cosmologia do poema como do poder espiritual da viagem do peregrino.






